Resumo
Os precatórios, dívidas governamentais decorrentes de sentenças judiciárias, têm se tornado grande problema de finanças públicas. Governos estaduais e municipais não pagam o que devem, ora argumentando falta de caixa, ora discordando do valor devido. No entanto, os credores tiveram seus pleitos julgados e devem receber o que lhes é devido. A principal proposição legislativa tramitando no Congresso Nacional para tentar resolver o problema permite que os entes da federação, mediante a reserva obrigatória de recursos para pagamento de precatórios, estabeleçam regime especial, com leilões nos quais credores que aceitarem os maiores descontos terão preferência no pagamento. O presente trabalho analisa essa proposição, mostrando que ela cria incentivos para a adesão voluntária dos estados e municípios devedores. Ademais, propõe um leilão de abatimento da dívida, que satisfaz a restrição de participação dos credores e reduz substancialmente a dívida e o tempo necessário para o seu total pagamento.
1 Os autores agradecem a Marcos Mendes por comentários e sugestões a versões anteriores deste trabalho. Os erros remanescentes são de inteira responsabilidade dos autores.
- 2 Doutor em Economia. Consultor Legislativo do Senado Federal.
E-mail: [email protected]
- 3 Ph.D. em Economia. Professor Titular do Ibmec São Paulo
E-mail: [email protected]
Introdução
Estados e municípios brasileiros possuem dívidas acumuladas crescentes decorrentes de precatórios não pagos de exercícios anteriores. Tal constatação é conseqüência de se ter um fluxo de pagamentos menor do que o fluxo de novos precatórios, o que faz com que a dívida cresça ao longo do tempo.
A legislação traz sanções para as unidades da federação que não pagarem seus precatórios; no entanto, como esse comportamento está disseminado por quase todos os estados e municípios, as punições cabíveis caíram em descrédito.
Os governos estaduais e municipais justificam o não pagamento com dois argumentos. Em primeiro lugar, argumentam que a legislação atual lhes impõe a execução de diversas despesas de caráter obrigatório, como saúde, educação, manutenção dos Poderes Legislativo e Judiciário, entre outras, não restando recursos para quitar precatórios, a menos que se comprometa o funcionamento cotidiano da máquina pública. Em segundo lugar, contestam os cálculos de reajustes das dívidas pelo Judiciário, em especial a incidência de juros muito elevados.
O problema já existe há bastante tempo. A forma até agora encontrada para se lidar com as restrições financeiras dos entes públicos foi o parcelamento dos débitos. Os constituintes de 1988 facultaram aos governos parcelar os precatórios então pendentes de pagamento em até oito anos. Posteriormente, a Emenda Constitucional nº 30, de 2000, autorizou outro parcelamento, dessa vez por dez anos. Tais parcelamentos, embora tenham aliviado o fluxo de caixa das entidades públicas devedoras, contribuíram para o acúmulo da dívida, uma vez que novos precatórios continuavam a entrar na fila de pagamento. Ademais, a expectativa de que novos parcelamentos viessem a ser decretados estimulava os administradores públicos a não honrar a tempo suas dívidas, para gozar, no futuro, do benefício do parcelamento.
Por outro lado, temos a figura dos credores que, em muitos casos, haviam sido realmente lesados pelo Poder Público, ganharam direito a serem indenizados, mas aguardam por anos pela quitação dos créditos, sobretudo os de natureza alimentícia, que decorrem de litígios relativos a direitos trabalhistas e benefícios previdenciários. Muitos desses credores são pessoas idosas que não podem esperar para receber o que lhes é devido.
O não-pagamento de precatórios, conforme explica Florenzano (2005, p.217), constitui problema complexo de várias facetas:
“É um problema jurídico, porque o não pagamento dos precatórios configura um descumprimento de decisões judiciais transitadas em julgado. Ora, se o próprio Estado não cumpre as decisões judiciais, não se pode sequer falar em Estado de Direito. É também, no entanto, um problema econômico, porque afeta o desenvolvimento da atividade econômica e diz respeito à alocação de recursos escassos. É, ainda, um problema social, porque envolve a distribuição e aplicação de recursos públicos.”
Para se ter idéia da dimensão da discussão, segundo o Supremo Tribunal Federal – STF4, estados, distrito federal e municípios devem cerca de R$ 78 bilhões em precatórios, o que equivale a aproximadamente 3% do PIB nacional em 2007. Do total, R$ 42,2 bilhões são precatórios alimentares e o restante, decorrentes, principalmente, de desapropriações de terras e imóveis. Apenas o estado de São Paulo deve R$ 13 bilhões, correspondente a cerca de 1,8% do PIB estadual em 2005.
Para complicar ainda mais a situação, a Justiça vem determinando o seqüestro de rendas de estados e municípios para o pagamento de parcelas de precatórios não- alimentares, atitude que começa a ser referendada pelo STF, conforme matéria publicada no jornal Valor Econômico5:
“desde 2005, o tribunal proferiu algumas decisões cautelares suspendendo o seqüestro de receitas de prefeituras para pagar precatórios não-alimentares, sempre sob a alegação de risco de grave lesão aos cofres públicos e somente quando os valores seqüestrados eram comprovadamente altos. A posição começou a mudar em outubro de 2006, quando foi julgado o mérito de uma reclamação do município de Diadema contra uma decisão da Justiça que determinou o seqüestro de renda para pagar um precatório não- alimentar. Ao julgar o mérito, o pleno do Supremo manteve o seqüestro.”
Resumindo o dilema: não é viável, por razões práticas, econômicas e financeiras, forçar o pagamento de forma brusca da dívida referente a precatórios. Por outro lado,
4 Levantamento realizado até dez/2004, com atualização até dez/2007.
5 TEIXEIRA, F. STF começa a votar seqüestro de renda. Valor Econômico, 28 mar/2008.
também não é aceitável que a decisão de pagar as dívidas fique entregue ao livre arbítrio do Poder Executivo estadual ou municipal e seja submetida a parcelamentos periódicos (que jogam todo o ônus sobre os credores).
As atuais regras para os precatórios precisam ser alteradas. Existem algumas proposições em tramitação no Congresso Nacional que objetivam alterar a legislação vigente de forma a equacionar os diversos problemas; no entanto, por diversas pressões, ora dos credores, ora dos devedores (estados e municípios), a tramitação das proposições avança lentamente e não se logra acordo para transformá-las em lei.
A mudança no sistema de pagamento de precatórios só terá viabilidade política se conseguir equilibrar os ganhos e perdas imputados às partes de forma que todos fiquem em situação melhor do que estão agora. A atual sistemática onera o Estado em infinitas disputas judiciais, impõe juros elevados sobre a dívida judicial, além de gerar o risco do seqüestro de rendas, situação instável não desejada por qualquer administrador público.
Os credores, por sua vez, embora possuam um crédito bem remunerado, sofrem com sua baixíssima liquidez. Aqueles que podem esperar pelo pagamento (ainda que parcelado) não estão em situação desconfortável; já os que necessitam de recursos a curto prazo ficam em situação mais delicada.
O perdedor inequívoco é a sociedade, que perde com a situação de insegurança jurídica.
O objetivo do presente estudo é analisar a atual sistemática dos precatórios e sugerir um modelo que consiga apontar para uma regra mais eficiente para todos os agentes envolvidos, de forma a ser possível defender proposta legislativa que seja aceitável para todas as partes.
No presente estudo, utilizou-se a teoria de desenho de mecanismos, sub-área de microeconomia, para entender os incentivos com os quais se defrontam os agentes tomadores de decisão, governos estaduais e municipais e os credores de precatórios desses entes e, levando em conta esses incentivos e partindo da premissa de que todos tomam suas decisões de forma estratégica, construir regras para uma alocação ótima de recursos.
O estudo do tema aqui introduzido encontra-se dividido da seguinte maneira. Na primeira seção, tem-se um resumo da legislação dos precatórios e a maneira como ela vem sendo aplicada. A seção dois analisa a principal proposição, em tramitação no Senado, que pretende alterar as regras dos precatórios. A seção três traz evidências quantitativas sobre o
estoque da dívida e algumas considerações básicas acerca do seu pagamento, no caso de aprovação da nova legislação. A seção quatro, cerne deste estudo, traz a análise da situação de credores e devedores no caso da implementação do novo modelo. Nessa seção mostra-se que há forte incentivo para que estados e municípios decidam voluntariamente aderir ao mecanismo previsto na nova legislação; ademais, propõe-se um formato específico para os leilões de deságio de precatórios citados na legislação, sendo derivado seu equilíbrio e determinado o benefício esperado para os estados e municípios com o deságio dessa dívida. Por fim, a quinta seção discute possíveis extensões e traz as conclusões e considerações finais do trabalho.
1. Legislação em vigor e fatos estilizados
Precatório judicial significa requisição de pagamento do montante da condenação judicial, feita pelo Presidente do Tribunal onde a decisão objeto de execução contra a Fazenda (União, Estados-membros, DF e Municípios) foi proferida. O pagamento corre por conta de verba consignada na Lei Orçamentária Anual diretamente ao Poder Judiciário. A matéria está regulada no art. 100 da Constituição Federal.
O Presidente do Tribunal requisita o pagamento, expedindo o competente precatório judicial. Entregue esse precatório ao ente político devedor, este deverá incluí-lo na ordem cronológica, para pagamento oportuno. Os precatórios entregues até 1º de julho de cada ano devem ter seus valores incluídos na Lei Orçamentária Anual do exercício seguinte, para pagamento atualizado até o final desse exercício. Cabe enfatizar, no entanto, que a simples inclusão do crédito destinado ao pagamento do precatório no orçamento não significa que este vá efetivamente ser pago.
Compete ao Presidente do Tribunal ordenar o pagamento dentro da ordem cronológica e segundo as possibilidades de depósito. No caso de quebra da ordem cronológica, cabe o seqüestro de rendas para o pagamento do credor preterido, se este assim o requerer.
A Constituição tentou estabelecer privilégio para os precatórios alimentares ao dispor que estes não precisam se sujeitar à ordem cronológica dos precatórios normais. Ironicamente, os credores alimentícios, em razão desse privilégio constitucional de que são titulares, estão sendo preteridos no pagamento, conforme explica Harada (2007).
Existem algumas conseqüências pelo descumprimento dos precatórios judiciais, como intervenção federal nos estados, responsabilização dos governantes ou rejeição das contas do Poder Executivo. No entanto, todos esses institutos, por nunca terem sido utilizados, não produzem efeito algum, nem mesmo como ameaça em potencial.
A penalidade que mais tem assustado os administradores públicos é o seqüestro de renda, possível somente no caso de preterição do direito de precedência do credor no caso dos precatórios não-alimentares.6
6 Conforme decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na ADI nº 1662-SP.
O controle da ordem cronológica pertence ao ente devedor. Assim, a preterição acontece no âmbito do Poder Executivo e, conforme se discute em Oliveira (2005), pode ser decorrente da compensação de débito tributário com precatório, do parcelamento do precatório nos termos previstos no art. 78 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT, ou de erros na elaboração de listagens de ordens cronológicas distintas por tribunal e não apenas em razão da natureza do crédito.
Várias situações podem tornar o Poder Público devedor em razão de uma condenação judicial. Dentre essas diversas causas destaca-se a desapropriação de imóvel urbano ou rural. Nos precatórios emitidos em virtude desse tipo de litígio, há um problema que se destaca: a incidência de juros compensatórios de 12% ao ano sobre as indenizações por desapropriação, seja ela feita para projetos de infra-estrutura, obras urbanas, criação de áreas de preservação ambiental ou reforma agrária.
Apesar de nunca terem sido fixados em lei, os juros compensatórios estão previstos, desde 1984, pela Súmula nº 618 do Supremo Tribunal Federal. Em entrevista7, o procurador da república Antônio Fonseca explica que o Supremo formulou sua posição em um contexto bem diferente do atual, em que, durante o período militar, o governo fixava o preço dos imóveis em valores abaixo do mercado propositalmente e a inflação de três dígitos consumia ainda mais o valor das indenizações. Ainda segundo o procurador, “a posição à época adotada para proteger os proprietários rurais dos abusos do Poder Público acabou se transformando em uma brecha para o enriquecimento sem causa”. O fato é que, além da correção monetária e dos juros de mora, a Justiça vem concedendo autorização para que incida, sobre a dívida de desapropriações, os juros compensatórios.
Outra questão também muito discutida é a possível utilização de precatórios para quitação de débitos tributários. Cabe informar que qualquer tipo de compensação entre crédito e débito do contribuinte frente ao Fisco depende de lei que autorize a sua realização. No âmbito federal, não há essa legislação.
Batista (2006) esclarece que os estados podem criar normas em suas jurisdições. No entanto, surge nesse caso outro problema. De fato, o Supremo Tribunal Federal, ao analisar lei do Espírito Santo que autorizava a compensação de precatórios com débitos tributários,
7 TEIXEIRA, F. Nova estratégia da AGU tenta dar fim aos juros em desapropriações. Valor Econômico, 19 nov/2007.
concluiu que esta previsão era incompatível com o art. 100 da Constituição Federal, haja vista tal dispositivo exigir a observância, para fins de pagamento, do cumprimento da ordem em que os precatórios são apresentados.
Cumpre notar, no entanto, que a própria Constituição Federal prevê, no art. 78 do ADCT, um tipo de exceção à mencionada regra do art. 100. Nesse caso, os precatórios pendentes na data de promulgação da Emenda nº 30, de 2000, e os que decorram de ações iniciais ajuizadas até 31/12/1999 “serão liquidados pelo seu valor real, em moeda corrente, acrescido de juros legais, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de dez anos, permitida a cessão de créditos”. E, nestes casos, as referidas parcelas anuais têm, “se não liquidadas até o final do exercício a que se referem, poder liberatório do pagamento de tributos da entidade devedora”.8
Em outras palavras, conforme explica Batista (2006), em caso de inadimplência de alguma das parcelas anuais, o titular do respectivo precatório, ainda que o tenha adquirido através de cessão promovida por terceiro, poderia utilizá-lo no pagamento de tributos devido ao ente público que emitiu o precatório.
A despeito de não existirem leis que permitam a utilização de precatórios para pagamento de obrigações, tribunais locais vêm criando modalidades para tanto, a exemplo de decisão da 2ª Vara de Fazenda Pública de Caxias do Sul, que deferiu o uso de precatórios para compra de imóveis em leilões públicos.9
Após essa explanação que retrata as ações e normas atualmente relacionadas aos precatórios, o tópico seguinte explica a principal proposta de alteração da sistemática de pagamento dessa dívida.
8 CONSTITUIÇÃO FEDERAL, art. 78, § 2º, ADCT.
9 TEIXEIRA, F. Precatório e usado para a compra de imóvel. Valor Econômico, 05 mar/2008.
2. Uma proposta de alteração
Há várias propostas de mudança da legislação dos precatórios no Congresso Nacional. No entanto, aquela que mais se destaca e vem sendo debatida no Senado é a Proposta de Emenda à Constituição nº 12, de 2006 (PEC 12/2006). Tal proposta foi sugerida pelo então presidente do STF, Nelson Jobim, alegando não poder punir os governantes inadimplentes e reconhecendo a necessidade de garantir o direito dos credores. Formalmente, a PEC 12/2006 foi protocolada no Senado pelo senador Renan Calheiros. A seguir, tem-se um resumo das principais alterações levantadas pela citada PEC10.
Mendes (2006, p.8), em que se baseia a análise a seguir, resume a proposição afirmando que “a PEC nº 12, de 2006, procura dar solução ao problema criando um sistema através do qual, por um lado, os devedores (União, Estados e Municípios) comprometam uma parcela fixa e limitada de suas receitas com o pagamento de precatórios e, por outro, os credores recebam seus recursos mais prontamente, porém sujeito a um deságio no valor do crédito.”
Para tanto, a proposta estipula, em primeiro lugar, que os credores de precatórios que, ao mesmo tempo, sejam devedores da mesma fazenda pública, serão pagos através da compensação de débitos e créditos. Ou seja, protege-se o erário de ser obrigado a pagar, em dinheiro, uma dívida a uma pessoa que também lhe deve.
Em segundo lugar, estabelece um mecanismo que, na prática, alguns estados já tentaram utilizar: o uso de precatórios (próprios ou de terceiros) para o pagamento de dívida ativa. Tal medida permite a criação de um mercado secundário de precatórios, no qual pessoas que precisam pagar dívida ao erário adquirem precatórios de seus detentores originais para utilizá-lo como moeda de pagamento daquelas dívidas. Ganha o devedor do erário, pois compra os precatórios com deságio e os utiliza pelo valor de face; ganha o detentor do precatório que, apesar de aceitar um deságio, recebe mais prontamente seus recursos; e ganha o erário, pois consegue receber uma dívida ativa que, em geral, tem difícil cobrança judicial.
10 O presente estudo analisa o texto original da PEC, não levando em conta as alterações propostas ao longo de sua tramitação no Senado.
Em terceiro lugar, a PEC veda a cobrança de “juros compensatórios”, o que reduz a conta a ser paga pelos entes públicos.
Por fim, a proposição propõe a abertura de uma exceção ao atual regime de pagamento de precatórios por ordem cronológica. Para tanto, cria um “regime especial” de pagamento de precatórios, ao qual a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios podem aderir voluntariamente. Nesse regime, o ente público deve reservar uma parcela de recursos para o pagamento de precatórios. Tais recursos devem ser depositados em uma conta específica, de onde os recursos só sairão para pagamento de precatórios, o que dá aos credores uma maior garantia de recebimento.
O montante a ser depositado pela União, Estados e Distrito Federal equivaleria a 3% da despesa primária deduzida das transferências constitucionais e legais feitas pelo ente público no exercício anterior. No caso dos Municípios, o percentual cairia para 1,5%.
Setenta por cento (70%) dos recursos acima descritos seriam usados para pagar precatórios em um sistema de leilão. Aquele credor que aceitasse maior desconto receberia seu pagamento primeiro. Os trinta por cento (30%) restantes seriam usados para pagar precatórios por ordem de valor (e não mais por ordem cronológica, como no sistema atual), sendo quitados, com prioridade, os de menor valor, independentemente da data de apresentação.
Os entes públicos que optassem pelo “regime especial” não ficariam sujeitos nem à intervenção federal (ou estadual, no caso dos Municípios) nem ao seqüestro de recursos por determinação judicial, a menos que não cumprissem os termos desse regime.
O “regime especial” cessaria quando o montante de precatórios a pagar fosse menor do que o montante de recursos reservado para tal na conta especial acima citada. Nesse momento, o ente retornaria ao sistema de pagamento por ordem cronológica.
A proposta contém diversos aspectos meritórios. Em primeiro lugar, ela viabiliza a criação de um novo mercado, no qual credores de precatórios podem vender seus créditos com segurança jurídica e no qual haverá um maior número de demandantes. Atualmente, as vendas de precatório se fazem com deságio elevado e, portanto, prejuízo ao credor do Estado, porque o comprador do crédito terá que enfrentar uma longa espera ou batalha judicial para recebê-lo. À medida que haja um mecanismo automático de pagamento de dívida ativa com precatórios, haverá um maior número de pessoas interessadas em comprar
os créditos, e esse mercado se tornará mais dinâmico e competitivo, resultando em menor deságio.
Em segundo lugar, trata-se de solucionar um conflito melhorando a situação atual de todas as partes. Ao se instituir o sistema de leilões, com recursos previamente fixados e separados para o pagamento dos precatórios, acelera-se o ritmo de pagamento das dívidas judiciais: ganham os credores, que receberão mais prontamente seus direitos; ganham os entes públicos, que não correrão o risco de ter uma parcela crescente de suas receitas comprometidas com o pagamento dos precatórios; e ganha a sociedade, que passa a gozar de maior segurança jurídica e não corre o risco de ter serviços públicos essenciais interrompidos em função de bloqueio judicial das contas dos entes públicos. Também é benéfica a redução de pontos de atrito entre o Poder Judiciário (que manda pagar) e o Poder Executivo (que, atualmente, não paga ou paga a menor).
Igualmente positiva é a proibição da cobrança de “juros compensatórios”, o que muitas vezes faz com que a dívida cresça em progressão geométrica, dada a incidência acumulada daqueles juros, com juros de mora e correção monetária.
A mudança da ordem de pagamento cronológica para ordem de pagamento por valores, iniciando-se pelos menores valores, tem o mérito de evitar o chamado “trancamento da fila”: sempre que chega a vez de pagar um precatório de elevado valor, o ente público resiste a fazê-lo. Como a lei obriga o pagamento por ordem de chegada, não se pode pagar outros precatórios, de menor valor, que tenham chegado posteriormente ao de maior valor. Mudando-se para o sistema de pagamento por ordem de valor, esse problema deixa de ocorrer.
Para o erário, uma vantagem adicional decorre desse novo sistema: os credores terão menor incentivo para requerer juros de mora e correções excessivas do valor do débito (o que é comum ocorrer, através de manobras jurídicas), pois, se assim o fizerem, seus créditos serão colocados em posição muito desfavorável na fila de pagamento.
Não obstante as vantagens apontadas, a proposta padece de alguns incentivos negativos. O primeiro deles é o estímulo à criação de novos precatórios. Se o erário fica autorizado a leiloar o pagamento de precatórios, obtendo desconto nos valores a pagar, haverá o estímulo a não pagar as despesas da administração, para que estas virem precatórios e venham a ser pagas, no futuro, com desconto. Há, no projeto, outro mecanismo
que tende a estimular o não pagamento de despesas e a criação de novos precatórios. A proposta estabelece que o “regime especial” cessará quando o estoque de precatórios a pagar
for inferior ao montante de recursos reservados para tal (3% da despesa primária11 do ano anterior no caso da União, Estados e DF, e 1,5% no caso dos Municípios). Se o “regime especial” for benéfico para a administração pública, ela tentará evitar o seu fim. Sempre que o montante de precatórios a pagar estiver chegando ao limite que determina o fim do “regime especial”, a administração terá incentivos para acumular novos precatórios, para que o regime seja mantido.
Há que se considerar também, que a situação atual talvez seja preferível para os credores que podem suportar a baixa liquidez de seus créditos e, com isso, gozar da elevada rentabilidade proporcionada pela acumulação de juros compensatórios. Governadores que tenham preferência pelo curto prazo (ou seja, que preferem ter dinheiro em caixa, a custo de insegurança jurídica, e deixando um problema financeiro para o sucessor) também resistirão à mudança do regime atual.
Os números a seguir retratam a situação para os estados, comparando o estoque de precatórios com os valores da despesa estadual.
11 No caso, considera-se despesa primária, ou não financeira, como aquela que exclui o pagamento de juros, deduzida ainda das transferências constitucionais e legais feitas pelo ente público.
3. Evidência quantitativa
A tabela a seguir mostra o estoque de precatórios de responsabilidade dos governos estaduais, conforme levantamento efetuado pelo STF até 2004. Acrescenta-se a essa informação os dados da despesa pública de cada estado em 2006 (fornecidos pela Secretaria do Tesouro Nacional), já deduzida dos encargos com juros e das transferências efetuadas, uma vez que é essa a referência utilizada na PEC 12/2006.
Tabela I
Estado | Dívida com precatórios judiciais (1,2) R$ mil (A) | Despesa primária menos transferências (3) R$ mil (B) | 3% da Despesa R$ mil (C) = 3%.(B) | Tempo necessário para quitação Anos (D) = (A) / (C) |
AC | 170.039 | 1.966.796 | 59.004 | 2,9 |
AL | 354.924 | 2.721.540 | 81.646 | 4,3 |
AM | 56.278 | 4.278.430 | 128.353 | 0,4 |
AP | 71.811 | 1.512.040 | 45.361 | 1,6 |
BA | 1.779.109 | 12.627.720 | 378.832 | 4,7 |
CE | 49.788 | 7.620.284 | 228.609 | 0,2 |
DF | 3.312.815 | 7.843.695 | 235.311 | 14,1 |
ES | 9.598.541 | 6.013.465 | 180.404 | 53,2 |
GO | 1.316.900 | 6.380.361 | 191.411 | 6,9 |
MA | 106.026 | 3.647.094 | 109.413 | 1,0 |
MG | 2.240.877 | 20.917.143 | 627.514 | 3,6 |
MS | 421.984 | 3.554.272 | 106.628 | 4,0 |
MT | 5.857.463 | 4.150.127 | 124.504 | 47,0 |
PA | 11.840 | 5.626.541 | 168.796 | 0,1 |
PB | 190.954 | 3.542.265 | 106.268 | 1,8 |
PE | 131.852 | 7.569.480 | 227.084 | 0,6 |
PI | 189.827 | 2.799.973 | 83.999 | 2,3 |
PR | 14.126.925 | 11.332.150 | 339.965 | 41,6 |
RJ | 1.884.635 | 23.297.615 | 698.928 | 2,7 |
RN | 155.473 | 3.737.282 | 112.118 | 1,4 |
RO | 492.726 | 2.164.925 | 64.948 | 7,6 |
RR | 2.683 | 1.156.134 | 34.684 | 0,1 |
RS | 2.999.154 | 14.968.225 | 449.047 | 6,7 |
SC | 322.966 | 6.881.663 | 206.450 | 1,6 |
SE | 101.598 | 3.080.565 | 92.417 | 1,1 |
SP | 13.017.305 | 60.264.317 | 1.807.930 | 7,2 |
TO | 17.380 | 2.420.258 | 72.608 | 0,2 |
Fonte: Dívida com precatórios – Supremo Tribunal Federal
Despesa – Balanço Estadual de 2006 / Secretaria do Tesouro Nacional
Nota: 1- Valores dos precatórios com base em levantamento até dezembro de 2004, atualizados pelo STF até dezembro de 2007.
2 – O levantamento não considera os ingressos de precatórios de 2005 a 2007. 3 – Relativo ao exercício de 2006
Note que, mantidas constantes as variáveis envolvidas, a coluna D da tabela I mostra quantos anos seria necessário para que o estoque de precatórios zerasse, caso ficassem reservados 3% da despesa anual para seu pagamento.
O pior caso é o do Espírito Santo, onde seriam necessários mais de 53 anos para que isso acontecesse. No entanto, no geral, as regras impõem um tempo bem razoável, pois a média de quitação dos valores, entre todos os estados, é de oito anos.
Cabe enfatizar que essa estimativa do tempo para quitação tende a ser maior se for incluído um fluxo de novos precatórios contribuindo para fazer crescer o montante da dívida. No entanto, os cálculos refletem o tempo necessário para a quitação da dívida atual, mas os leilões de deságio previstos na nova legislação tendem a reduzir esse tempo12. Na seção 4.3, será apresentada nova estimativa, considerando a possibilidade de o estado pagar sua dívida com deságio.
12 O tempo necessário para a quitação total da dívida também pode aumentar (diminuir) caso a taxa de crescimento da dívida seja maior (menor) que a taxa de crescimento da receita estadual.
4. Análise da situação de credores e devedores
O principal desafio deste artigo é analisar as alterações propostas para determinar em que situação os estados e municípios decidirão aderir voluntariamente ao novo mecanismo, propor um formato específico para os leilões de deságio de precatórios e analisar o benefício esperado para o ente federativo nesse novo mecanismo. De forma a simplificar a discussão, usaremos no que se segue o termo genérico “estado” para representar a unidade da federação que será afetada pela regra proposta, seja ela um estado ou um município.
Visando facilitar o entendimento e considerando que o objetivo desta publicação é auxiliar no processo legislativo, omitimos o desenvolvimento teórico da matéria, permanecendo, no entanto, todas as considerações e conclusões decorrentes da modelagem econômica13.
4.1 O novo mecanismo do ponto de vista dos estados
Primeiramente, analisam-se os incentivos gerados pelo novo mecanismo, em comparação com a situação atual, relativamente aos estados (devedores).
Consideremos que o estado tem duas opções: manter a atual situação ou aderir ao regime especial estipulado pela PEC 12/2006.
Podemos denominar a atual situação de “mecanismo estocástico”, pois o montante a ser pago em cada período é decidido aleatoriamente pelos tribunais: há, portanto, uma incerteza imposta ao estado quanto ao montante de precatórios que lhe será cobrado.
Na situação proposta pela nova lei dos precatórios o estado pagará um montante pré- determinado em cada período, visto que a PEC estabelece um gasto máximo equivalente a um percentual da despesa primária do ano anterior. O mecanismo de pagamento da dívida perde sua componente estocástica e passa a tomar uma forma determinística.
Para que o estado tenha interesse em aderir voluntariamente ao novo regime especial de precatórios, em que deve reservar parte de seu orçamento para o pagamento da dívida, é necessário que o benefício que ele espera obter com o novo mecanismo seja maior que aquele proporcionado pelo mecanismo atual.
13 O leitor interessado pode solicitar aos autores o detalhamento matemático dos raciocínios a seguir desenvolvidos.
É possível demonstrar matematicamente que o estado terá interesse em aderir voluntariamente ao mecanismo de pagamento determinado pela nova lei de precatórios, se ele descontar o futuro com uma taxa de juros suficientemente baixa (ou seja, se para ele não for muito diferente ter dinheiro em caixa hoje, ou ter dinheiro em caixa no futuro), pois, nesse caso, o estado não terá forte interesse em postergar o pagamento.
Frente a essa constatação, dois pontos precisam ser analisados:
- será interessante para cada estado apoiar a aprovação da PEC?
- uma vez aprovada a PEC, será interessante para cada estado optar pelo novo regime de pagamento de precatórios?
Comecemos pelo segundo ponto. Um estado só aderiria ao novo regime se a taxa de juros que ele desconta o futuro for suficientemente baixa. E o que determina essa taxa? Devemos encarar o não-pagamento de precatórios como uma das possíveis formas de financiamento do estado. Este optará por se financiar via atraso nos precatórios se essa modalidade de financiamento for mais barata e/ou segura que as demais opções de financiamento, como crédito bancário, emissão de títulos públicos, empréstimos internacionais, etc.
Assim, o primeiro ponto a analisar é o custo da dívida em precatórios vis a vis o custo das demais dívidas. Tendo em vista que, no caso dos precatórios, há a incidência de elevados juros compensatórios, essa dívida tende a ser mais cara que as demais. Isso faz com que, ceteris paribus, os estados tenham preferência por acumular outras dívidas que não a de precatórios. Ou seja, a existência de juros compensatórios eleva o valor da taxa de juros para o estado, induzindo-o a pagar logo os precatórios para se livrar de uma dívida mais cara que as outras (ou, alternativamente, induzindo-o a aderir ao regime de pagamento determinístico).
Na prática, contudo, o acúmulo de precatórios não-pagos ocorre porque há a perspectiva de não-pagamento dessa dívida (enquanto os demais tipos de financiamento têm que ser pagos em dia). O histórico de parcelamentos já ocorridos e de não execução de medidas de intervenção federal em caso de inadimplência faz com que os estados se sintam seguros em não pagar os precatórios. Por isso, preferem manter a dívida mais cara (não pagar precatórios), em vez de quitá-la e se financiar por meio de outro tipo de dívida.
Essa situação talvez esteja mudando, uma vez que seguidas decisões judiciais têm confiscado a receita pública para pagamento de precatórios, aumentando a insegurança dos
estados quanto à possibilidade de continuar se financiando impunemente via precatórios não-pagos.
Uma vez que a PEC tenha sido aprovada, a efetiva adesão dos estados ao novo regime de pagamentos (modelo determinístico) só será uma atitude individualmente racional se acabar a tolerância da sociedade e da justiça com a inadimplência, reduzindo-se a zero a probabilidade de impunidade em caso de não-pagamento. Portanto, é fundamental que as instituições funcionem e seja exigido o pagamento dos precatórios (independente de o estado aderir ou não ao novo regime) para que haja interesse dos estados em aderir ao mecanismo determinístico.
A baixa taxa de inflação dos últimos anos também pode induzir os estados tanto a apoiar a aprovação da PEC quanto a aderir ao novo regime de pagamentos. Tendo em vista que os precatórios, ao contrário da maioria dos outros tipos de financiamento, não são perfeitamente indexados14, um contexto de alta inflação estimula a postergação no pagamento dos precatórios, para absorver os ganhos com a desvalorização do passivo. Esta observação talvez explique porque o mecanismo determinístico não foi proposto antes de o Brasil conseguir controlar a inflação.
Outro fator que estimula os estados a aprovar a PEC e a aderir ao novo modelo de pagamentos é a possibilidade dos credores negociarem suas dívidas com deságio nos leilões previstos no modelo. Isso torna mais atraente a nova legislação, aumentando o potencial de adesão espontânea do estado ao novo mecanismo.
Por outro lado, a PEC contém um elemento que pode desestimular os estados a aderir ao novo modelo de pagamento. Não está claro se o texto da PEC propõe decretar o fim dos juros compensatórios para todos os estados, independente de cada estado, individualmente, aderir ou não ao novo regime; ou se os juros compensatórios deixarão de ser pagos apenas por aqueles que aderirem ao novo regime de pagamentos15. Se os juros compensatórios
14 A correção monetária dos precatórios gera novas obrigações, que não são pagas imediatamente. Em geral, existe uma defasagem no pagamento dessa correção, o que gera novo prazo para a quitação. Essa sistemática difere, por exemplo, de um título de dívida mobiliária, que é corrigido diariamente.
15 Lê-se no texto da PEC que; “§ 16. Os precatórios pendentes de pagamento serão corrigidos, a partir da data da promulgação desta Emenda Constitucional, pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo – (IPCA) ou outro que o venha a substituir, calculado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), acrescidos de juros de seis por cento ao ano, ficando excluída a incidência de juros compensatórios.”. Essa redação indica a intenção de extinguir os juros compensatórios para todos os precatórios, independentemente de o estado ter aderido ao novo regime de pagamento.
forem extintos para todos, a melhor opção para cada estado será de apoiar a aprovação da PEC, mas, uma vez aprovada a nova legislação, não aderir ao modelo determinístico, permanecendo no modelo estocástico. Afinal, fazendo essa opção, o estado continuará em um regime em que pode postergar pagamentos e ainda terá o benefício de juros menores. Por isso, fica claro, mais uma vez, que a aprovação da PEC precisa ser acompanhada de mecanismos coercitivos que efetivamente obriguem o pagamento dos precatórios devidos, coibindo a postergação dos pagamentos, independente de o estado aderir ou não ao modelo determinístico.
Caso o fim dos juros compensatórios seja válido apenas para os estados que aderirem ao novo regime, esse seria um forte estímulo à adesão ao modelo determinístico. Essa opção, contudo, parece ser frágil em termos jurídicos, podendo ser contestada por qualquer estado que não opte pelo novo modelo.
Situação similar ocorre com a possibilidade, aberta pela PEC, de utilização de precatórios para quitação de débitos tributários inscritos em dívida ativa. Isso beneficia o estado, uma vez que facilita o recebimento de valores devidos pelos contribuintes sem envolver elevado custo de cobrança judicial. Se essa possibilidade estiver disponível para todos os estados, independente de adesão ao novo regime de pagamentos, haverá estímulo a apoiar a aprovação da PEC, mas, não necessariamente, estímulo a aderir ao novo modelo de pagamento. Se o benefício estiver disponível apenas para os estados que aderirem ao novo modelo de pagamento, então o estímulo será não apenas de apoiar a aprovação da PEC, mas, também, de aderir ao novo modelo16.
Os leilões de deságio da dívida em precatórios, em particular, não tiveram implantação claramente definida na legislação proposta. No entanto, por constituírem importante potencial de redução das dívidas dos estados, são de fundamental importância
Contudo, tal dispositivo está inserido no art. 95 que a PEC pretende inserir no ADCT da Constituição. Esse artigo 95 trata especificamente do “regime especial de pagamento” de precatórios: “Art. 95. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão optar, por ato do poder executivo, de forma irretratável, por regime especial de pagamento de precatórios relativos às suas administrações direta e indireta, a ser efetuado com recursos calculados com base na vinculação de percentual de suas despesas primárias líquidas, nos termos, condições e prazos definidos em lei federal”
Resta, portanto, saber qual a amplitude da medida de extinção dos juros compensatórios: se para todos ou se apenas para os que aderirem ao novo regime.
16 Assim como no caso dos juros compensatórios, a possibilidade de pagamento de dívida ativa com precatórios tem uma redação de norma geral, porém inserida como parágrafo (§ 15) em um artigo que regulamenta o regime especial de pagamento de precatórios.
para o equilíbrio fiscal dos entes federativos e merecem, portanto, estudo mais aprofundado. A próxima seção tem por objetivo analisar cuidadosamente os incentivos com os quais se defrontam os credores de um estado que tenha aderido ao novo mecanismo, no que diz respeito à sua participação no leilão de deságio, com vistas a estimar o impacto do mecanismo determinístico na redução da dívida dos entes federativos.
4.2. Leilões de deságio de precatórios e o comportamento dos credores
Conforme visto anteriormente, a legislação proposta estabelece que 70% dos recursos destinados ao pagamento de precatórios a cada ano serão aplicados por meio de leilões de deságio. Com vistas a analisar o novo mecanismo sob o ponto de vista dos credores faz-se necessário apresentar uma proposta de formato para esses leilões.
Vamos sugerir que o mecanismo proposto consiste de um leilão da seguinte forma: cada participante apresenta um envelope selado contendo o fator de deságio máximo aceito para receber imediatamente seu crédito devido, ou seja, o credor aceitaria receber seu crédito multiplicado pelo fator de deságio. Em cada período, será leiloado o valor correspondente ao percentual reservado no orçamento do estado, conforme previsto no regime especial. A tabela a seguir mostra um exemplo hipotético, com cinco credores participando do leilão, seus lances e os créditos a que teriam direito.
Tabela II
Credor | Fator de deságio constante do lance | Valor da dívida | Valor mínimo que o credor aceita receber | Deságio aplicado à dívida | |
% | $ | $ | % | $ | |
(a) | (b) | (c) = (a) x (b) | (d) = 100% – (a) | (e) = (d) x (b) | |
A | 70% | 100 | 70 | 30% | 30 |
B | 65% | 180 | 117 | 35% | 63 |
C | 54% | 200 | 108 | 46% | 92 |
D | 80% | 120 | 96 | 20% | 24 |
E | 50% | 90 | 45 | 50% | 45 |
Se ordenarmos todos os lances em ordem crescente e formos somando os valores pagos a cada credor (ou seja, o valor do crédito multiplicado pelo fator de deságio), então teremos vencedores até quando a soma das parcelas quitadas não ultrapassar o valor reservado pelo estado para o pagamento de precatórios via leilão.
No entanto, há uma consideração importante neste formato: o fator de deságio a ser aplicado nas dívidas é o mesmo para todos os vencedores e igual ao lance do primeiro credor que não conseguiu ser contemplado no leilão. 17
Para facilitar o entendimento, vamos ordenar os dados anteriores em ordem crescente de fator de deságio, conforme a tabela III. Vamos ainda supor que, no nosso exemplo, o governo tenha reservado para o leilão o valor de $330.
Tabela III
Credor | Fator de deságio constante do lance | Valor da dívida | Valor devido ao credor vencedor | Deságio aplicado à dívida dos vencedores | |
% | $ | $ | % | $ | |
(a) | (b) | (c) = 70% x (b) | (d) | (e) = (d) x (b) | |
E | 50% | 90 | 63 | 30% | 27 |
C | 54% | 200 | 140 | 30% | 60 |
B | 65% | 180 | 126 | 30% | 54 |
A | 70% | 100 | |||
D | 80% | 120 | |||
Despesa total do estado: | 329 |
Nesse caso, o estado teria recursos para pagar as dívidas de precatórios (com deságio) dos credores E, C e B (os três que ofereceram os menores fatores de deságio). Mas a parcela a que esses vencedores têm direito não é calculada com base no lance deles e sim com base no lance do primeiro perdedor (o credor A). Portanto, os vencedores estarão sujeitos a um deságio de apenas 30%, o que gera, para o estado, a obrigação de pagar $329 no total.
Caso se verifique empate, com dois credores oferecendo o mesmo fator de deságio, sendo que não há recurso suficiente para que os dois sejam vencedores, então será considerado primeiramente aquele que tiver o menor volume de dívida a receber, de forma a manter o princípio de prioridade ao pagamento das menores dívidas que permeia a legislação proposta. Em caso de novo empate, então será escolhido vencedor um dos empatados de forma aleatória.
17 Em Teoria Econômica, esse tipo de leilão é denominado de Vickrey (segundo preço) generalizado.
Portanto, no leilão proposto, vencem os credores que aceitarem os maiores deságios, sendo que o número de vencedores é endogenamente determinado pela quantidade de recursos disponível para pagamento.
Defrontado com o novo mecanismo, o credor do estado tem duas opções: participar do leilão de deságio ou aguardar para receber seu crédito sem deságio. Vamos supor, para simplificar, que temos um “jogo” entre credores e devedores composto de dois períodos. No primeiro período, o devedor pode ou não pagar os precatórios devidos. No segundo período ele salda toda a sua dívida obrigatoriamente.
Como no último período toda a dívida do estado é saldada, não há interesse do credor em participar de nenhum leilão de deságio nesse período.
Dado que existe uma perda com a espera para receber só no segundo período, que não há custo direto para entrada no leilão e que, por meio de seu lance, qualquer participante pode garantir que não lhe será imposto fator de deságio menor que o mínimo que lhe é aceitável, todos os credores terão interesse em participar do leilão.
Uma vez partícipe, o credor deve decidir que deságio lançar. Veremos a seguir que o melhor para o credor é lançar exatamente o menor valor (maior deságio) que ele está disposto a receber. Ou seja, o credor revela o desconto que está disposto a suportar para receber imediatamente o seu crédito, quando comparado com a alternativa de esperar para receber seu crédito, integralmente, no próximo período.
Se o credor fizer seu lance máximo e não for contemplado, então o deságio aplicado aos vitoriosos é maior ou igual ao seu. No exemplo acima, o credor D indicou estar disposto a suportar um deságio de 20%. No resultado do leilão, o deságio foi de 30%. O que o credor D poderia ter feito? Se diminuísse o deságio proposto no leilão (por exemplo, para 10%), nada mudaria, pois continuaria perdedor. Se aumentasse o deságio, a ponto de fazer alguma diferença, teria que ir além do limite de corte (30%), mas então ele receberia seu crédito com um deságio acima do mínimo que ele considerava aceitável (20%), o que seria, para ele, pior que perder (para ele é melhor esperar para receber integralmente no próximo período do que aceitar, no primeiro período, um deságio maior que 20%). Portanto, se ele está perdendo lançando seu deságio máximo aceitável, não há nenhuma outra escolha que melhore sua utilidade esperada.
Suponha agora que o jogador tenha lançado seu deságio máximo e tenha sido contemplado (como, por exemplo, o indivíduo C, que deu um lance indicando aceitar receber apenas 54% do valor de face do seu crédito, o que equivale a um deságio de 46%). Então o deságio efetivamente aplicado pelo tipo de leilão proposto será menor ou igual ao dele (no exemplo, o deságio aplicado será de 30%). Mas então, se aumentasse o deságio proposto (por exemplo, de 46% para 50%), o indivíduo continuaria contemplado e isso não afetaria o deságio que lhe será aplicado (que continuaria sendo de 30%). Por outro lado, se diminuir o deságio no seu lance, poderá sair da categoria de vencedor (se, por exemplo, o indivíduo C diminuísse seu lance para 29%), o que lhe seria prejudicial (pois ele estaria disposto a pagar um deságio de até 46%). Portanto, o credor não consegue ter benefício algum mudando a estratégia ótima, que é a de dar como lance o maior deságio (o menor valor a receber) que ele efetivamente esteja disposto a aceitar.
Algumas importantes considerações podem ser feitas em relação ao retorno esperado médio (por vencedor) para o estado nesse leilão. Em primeiro lugar, nota-se o natural papel das necessidades de recursos dos credores. Quanto mais pacientes forem eles, menos dispostos estarão a aceitar grandes deságios para receber logo o que lhes é devido. Mas então, menores serão os deságios propostos e, conseqüentemente, menor será o retorno para o estado.
Em segundo lugar, nota-se o importante papel do número de participantes do leilão. À medida que aumenta o número de participantes, ceteris paribus, aumenta também a receita esperada do leiloeiro, tendendo, no limite, ao maior deságio possível. Esta propriedade mostra que o leilão proposto é extremamente benéfico para o estado quando há muitos credores. No entanto, espera-se que o leiloeiro dificilmente atinja esse retorno ótimo, uma vez que o número de participantes é finito. Na próxima seção são feitas simulações sobre o ganho esperado para o estado.
4.3. Simulação de benefício para o estado
Como a PEC nº 12, de 2006, propõe que 70% do valor reservado pelo estado será para pagar os credores que participem de leilão em que terá preferência aquele que oferecer o maior deságio ao ente público, há a possibilidade do percentual médio do deságio ser significativamente alto de modo a acelerar a queda do estoque de precatórios (beneficiando os devedores às custas de um maior deságio médio aceito pelos credores). Na simulação a
seguir consideram-se deságios médios de 50% e 25%, a ser aplicado em 70% da dívida, o que gera os valores retratados na Tabela IV.
Primeiramente, merece ser enfatizado que não cabem leilões, conforme a proposta legislativa, quando o valor reservado para pagamento de precatórios (3% da despesa primária) for superior ao estoque da dívida com essa rubrica. Por esse motivo, não está computada a estimativa para os estados de Amazonas, Ceará, Maranhão, Pará, Pernambuco, Roraima e Tocantins.
Em relação aos demais estados da federação, note a queda do tempo necessário para quitação quando se considera o deságio. Quanto maior o deságio aplicado à dívida de precatórios, maior a queda do tempo necessário para o fim de seu estoque, que acontece de forma acelerada.
Tabela IV
Estado | Dívida com precatórios judiciais R$ mil (A) | Despesa conforme PEC R$ mil (B) | Reserva de valor: 3% da Despesa R$ mil (C) = 3%.(B) | 70% da reserva, que é destinada ao leilão R$ mil (D)=0,7(C) | Tempo necessário para quitação Anos (E) = (A)/(C) | Com deságio de 50% (d=0,5) * | Com deságio de 25% (d=0,75) * | ||||
Tempo necessário para quitação Anos (F)=(A)/(G+0,3(C)) | Abatimento da dívida do estado no primeiro ano de implementação do leilão | Tempo necessário para quitação Anos (I)=(A)/(J+0,3(C)) | Abatimento da dívida do estado no primeiro ano de implementação do leilão | ||||||||
Valor # R$ mil (G)=(D)/0,5 | Parcela da dívida % (H)=(G+0,3(C))/(A)x100 | Valor # R$ mil (J)=(D)/0,75 | Parcela da dívida % (K)=(J+0,3(C))/(A)x100 | ||||||||
AC | 170.039 | 1.966.796 | 59.004 | 41.303 | 2,9 | 1,7 | 82.605 | 59,0 | 2,3 | 55.070 | 42,8 |
AL | 354.924 | 2.721.540 | 81.646 | 57.152 | 4,3 | 2,6 | 114.305 | 39,1 | 3,5 | 76.203 | 28,4 |
AM | 56.278 | 4.278.430 | 128.353 | 89.847 | 0,4 | ||||||
AP | 71.811 | 1.512.040 | 45.361 | 31.753 | 1,6 | 0,9 | 63.506 | 107,4 | 1,3 | 42.337 | 77,9 |
BA | 1.779.109 | 12.627.720 | 378.832 | 265.182 | 4,7 | 2,8 | 530.364 | 36,2 | 3,8 | 353.576 | 26,3 |
CE | 49.788 | 7.620.284 | 228.609 | 160.026 | 0,2 | ||||||
DF | 3.312.815 | 7.843.695 | 235.311 | 164.718 | 14,1 | 8,3 | 329.435 | 12,1 | 11,4 | 219.623 | 8,8 |
ES | 9.598.541 | 6.013.465 | 180.404 | 126.283 | 53,2 | 31,3 | 252.566 | 3,2 | 43,1 | 168.377 | 2,3 |
GO | 1.316.900 | 6.380.361 | 191.411 | 133.988 | 6,9 | 4,0 | 267.975 | 24,7 | 5,6 | 178.650 | 17,9 |
MA | 106.026 | 3.647.094 | 109.413 | 76.589 | 1,0 | ||||||
MG | 2.240.877 | 20.917.143 | 627.514 | 439.260 | 3,6 | 2,1 | 878.520 | 47,6 | 2,9 | 585.680 | 34,5 |
MS | 421.984 | 3.554.272 | 106.628 | 74.640 | 4,0 | 2,3 | 149.279 | 43,0 | 3,2 | 99.520 | 31,2 |
MT | 5.857.463 | 4.150.127 | 124.504 | 87.153 | 47,0 | 27,7 | 174.305 | 3,6 | 38,1 | 116.204 | 2,6 |
PA | 11.840 | 5.626.541 | 168.796 | 118.157 | 0,1 | ||||||
PB | 190.954 | 3.542.265 | 106.268 | 74.388 | 1,8 | 1,1 | 148.775 | 94,6 | 1,5 | 99.183 | 68,6 |
PE | 131.852 | 7.569.480 | 227.084 | 158.959 | 0,6 | ||||||
PI | 189.827 | 2.799.973 | 83.999 | 58.799 | 2,3 | 1,3 | 117.599 | 75,2 | 1,8 | 78.399 | 54,6 |
PR | 14.126.925 | 11.332.150 | 339.965 | 237.975 | 41,6 | 24,4 | 475.950 | 4,1 | 33,7 | 317.300 | 3,0 |
RJ | 1.884.635 | 23.297.615 | 698.928 | 489.250 | 2,7 | 1,6 | 978.500 | 63,0 | 2,2 | 652.333 | 45,7 |
RN | 155.473 | 3.737.282 | 112.118 | 78.483 | 1,4 | 0,8 | 156.966 | 122,6 | 1,1 | 104.644 | 88,9 |
RO | 492.726 | 2.164.925 | 64.948 | 45.463 | 7,6 | 4,5 | 90.927 | 22,4 | 6,2 | 60.618 | 16,3 |
RR | 2.683 | 1.156.134 | 34.684 | 24.279 | 0,1 | ||||||
RS | 2.999.154 | 14.968.225 | 449.047 | 314.333 | 6,7 | 3,9 | 628.665 | 25,5 | 5,4 | 419.110 | 18,5 |
SC | 322.966 | 6.881.663 | 206.450 | 144.515 | 1,6 | 0,9 | 289.030 | 108,7 | 1,3 | 192.687 | 78,8 |
SE | 101.598 | 3.080.565 | 92.417 | 64.692 | 1,1 | 0,6 | 129.384 | 154,6 | 0,9 | 86.256 | 112,2 |
SP | 13.017.305 | 60.264.317 | 1.807.930 | 1.265.551 | 7,2 | 4,2 | 2.531.101 | 23,6 | 5,8 | 1.687.401 | 17,1 |
TO | 17.380 | 2.420.258 | 72.608 | 50.825 | 0,2 |
* O deságio só se aplica a 70% da dívida, conforme especificação do regime especial.
# Soma dos infinitos termos de um progressão geométrica decrescente de razão (1-d)
Infere-se das estimativas apresentadas que o leilão com base nos deságios é extremamente positivo para os estados. Basta saber que, tomando por base a dívida de todos os estados considerados na Tabela II, um deságio de 25% faz com que a dívida seja abatida em 12,6%, quando o valor reservado para pagamento da dívida representa apenas 10,2% de seu total. Se o deságio for de 50%, o abatimento é de 17,4%, com a mesma reserva de recursos.
Cabe ressaltar que toda essa seção baseou-se na hipótese de a PEC já estar aprovada, e com a sua redação original, que destina 70% dos recursos para pagamento de precatórios via leilão. Há que considerar, contudo, que os ganhos proporcionados aos estados por esse procedimento correspondem a perdas impostas aos credores.
Obviamente, antecipando as perdas futuras, os credores podem resistir à aprovação da PEC caso considerem que a canalização de recursos para os leilões seja muito elevada e geradora de fortes deságios em seus créditos, visto que restariam poucos recursos para o pagamento fora do leilão.
Portanto, um ponto crucial para viabilizar a formação de um consenso para aprovação da PEC é a calibragem do percentual de recursos que será destinado ao pagamento via leilões: se for elevado, aumenta o apoio dos estados e reduz-se o dos credores, e vice-versa.
5. Considerações finais e conclusões
A inadimplência de vários estados e municípios brasileiros no pagamento de precatórios é de conhecimento público. Embora legítimo, por um lado, não é econômica, nem social, nem politicamente viável exigir a quitação imediata do total da dívida referente a precatórios.
No entanto, também não há como manter inalterada a presente situação, pois a omissão do Poder Público gera a criação de caminhos paralelos que estão longe de serem as soluções mais eficientes: como a criação de um mercado não-oficial, no qual trabalhadores e empresas, cansados de esperar por um acerto de contas que não ocorre, vendem seus precatórios com um enorme deságio, ou a proliferação de decisões judiciais que promovem o seqüestro de recursos financeiros dos entes públicos.
Nesse sentido, encontrar uma solução eficiente, que possa balizar uma nova legislação para resolver a problemática dos precatórios, é a principal contribuição deste estudo.
Foi analisada a principal proposição legislativa que tramita no Congresso Nacional: a Proposta de Emenda à Constituição nº 12/2006. A grande alteração constante dessa proposta consiste em permitir que os entes da federação, mediante a reserva obrigatória de recursos para pagamento de precatórios, adquiram a prerrogativa de estabelecer regime especial em que eles possam realizar leilões nos quais o credor que aceitar o maior desconto será o primeiro a receber seu pagamento.
Cumprida a análise da PEC 12/2006, o trabalho foi além da proposição citada, de forma a sugerir um formato específico para que os estados e municípios realizem seus leilões e, ainda, estimar os benefícios que esses leilões trarão aos estados e municípios.
Os principais resultados do estudo indicam que as unidades federativas terão interesse em participar voluntariamente de um regime no qual elas sejam obrigadas a reservar parcela de seu orçamento, se o cenário macroeconômico garantir taxas de juros efetivas suficientemente baixas. Tal cenário é facilitado em um ambiente não inflacionário. Além disso, é fundamental para a adesão que as instituições garantam o cumprimento dos pactos, punindo efetivamente os estados que, após à aprovação da PEC, venham a reincidir no não-pagamento de precatórios.
Considerando o formato sugerido para os leilões, o credor terá interesse em participar dele, uma vez que não há risco para ele de incorrer em deságio superior ao seu lance. Mostra-se também que a melhor estratégia do credor é lançar o maior deságio que está disposto a assumir.
Quanto menos o credor estiver disposto a perder, mais paciente ele será, no sentido de poder esperar mais tempo para receber seu crédito. Essa situação gera menor retorno esperado para o ente federativo. Em contrapartida, quanto maior o número de participantes do leilão, maior é a receita esperada para o ente público com o leilão. As simulações baseadas em deságios de 25% e 50% mostram resultados extremamente benéficos para os estados e municípios.
Se o próprio Estado não cumpre as decisões judiciais, a sensação de insegurança jurídica tende a se espalhar pela sociedade, com sérias repercussões negativas para o crescimento econômico. Este estudo pretendeu traçar linhas para uma nova legislação, que atenda tanto a credores quanto devedores, permitindo que todos os envolvidos estejam, após sua implantação concluída, em um patamar mais alto de satisfação, contribuindo, assim, para o desenvolvimento do país.